sexta-feira, 17 de abril de 2009

A tela

Acto I (único)

Um quarto. Uma cama meio-desfeita. Lençóis brancos. Roupa escura não vermelha. Uma tela quase acabada num cavalete. Uma mesa. Toalha escura não vermelha. Paletas, tintas e pincéis em copos de vidro transparente. Livros empilhados. Livros espalhados. Um grande jarro de água, meio-cheio. Dois copos com alguma água. Um cinzeiro com várias beatas apagadas. Um forte cheiro a incenso. Luz baixa. Velas. Sempre nervoso e descalço, um homem de pijama fuma (nervosamente) quase sem parar. Numa vela, acende um segundo cigarro. Toca a campainha. O homem, Maurice, apaga o cigarro apressadamente e vai à porta. Por ela entra Simone, de salto alto, com um sobretudo, uma mini-saia vermelha e meias de liga pretas. Maurice guia-a para o interior do seu quarto. Simone, despachada, senta-se na cama mesmo em frente ao cavalete. Maurice acendendo um terceiro cigarro e apontando para a tela, pergunta:

Maurice. Que idade tem este quadro?

Simone, desgastada e olhando para Maurice. Quer fazer sexo ou não?

Maurice, impassível sem olhar Simone, como se fosse a primeira vez que perguntava. Que idade acha que tem este quadro?

(pausa)

Simone, absorta. Olhe. Maurice. Hoje tive um dia mau e não me vai chatear. Desgastada e resoluta. Se quiser fazer sexo, vamos a isso. Se quer pintar o meu corpo, já me dispo... Quer falar sem parar como costuma, fale... Agora não me obrigue a responder às suas perguntas sem sentido!
Maurice, berra, ofendido, assustando Simone. Não é uma pergunta sem sentido! Voltando a perguntar, grita. Que idade?!

Simone, sentindo-se impelida a responder qualquer coisa que seja e dividindo o olhar entre Maurice e a tela. É óbvio que foi feito agora. Tem a tinta fresca. Tem minutos de vida!

Maurice, calmo. O que é óbvio não vale nada. Nunca valeu. Uma paixão óbvia nunca chega a ser amor. Um Deus óbvio seria controlado pelo próprio destino que criou. Respira fundo. Recomeça aumentando o volume da voz. Acha-me óbvio? Simone não responde. Maurice, mais forte. Acha-me óbvio? Não pode achar-me óbvio porque não sou. Pensativo. Não porque não queira, mas porque não sou. E se não sou óbvio, nada nos meus quadros é óbvio. Chupa nervosamente o cigarro e aumenta novamente o tom de voz. O que é que vê? Simone, entretanto cabisbaixa, levanta a cabeça para olhar novamente a tela. Maurice calmo vai-se entusiasmando sem nunca deixar de ser sério, pesado, mesmo. O que é que vê aqui? Vermelho. Sangue. Negro. Escuridão. Amarelo. Loucura. Sofrimento. Angústia. Medo. Insegurança. Isto é tudo, menos óbvio. Isto tem tudo, menos minutos de vida. Isto é eterno e só não vê quem não quer. Isto tem milhares de anos. Desde o primeiro ao último homem há-de durar. É a minha dor. E a sua também. É a minha e a sua dúvida. É a minha e a sua ignorância. E é tudo menos óbvio. Óbvio é o dinheiro que lhe vou dar agora e que ninguém esconde. Muito menos evidente é o que está por detrás de cada sofrimento, de cada dor. E da loucura? Fala baixo, como se falasse só para si. O que está por detrás dela? Distante e de olhos bem abertos, mas já não sussurrando. Nem sei porque me levantei hoje... A Georgina, uma vez, respondeu-me a esta questão e disse-me: “Levantaste-te porque me amas.” (pausa) Mas eu não a amava... pelo menos naquela noite. E disse que sim... Menti-lhe. A partir daí nunca mais me levantei... Fiquei sempre deitado... à espera dela. (pausa, como se esperasse...) Ainda hoje estou deitado. Mas não é isso que me faz querer a morte. São os homens. São as máscaras que usam... Mas se a morte for igual à vida, não vale a pena morrer. Ou talvez valha... Como que acordando, muito frio e distante, estende-lhe um maço de notas que tinha no bolso. Acabou o teu tempo. Podes ir embora.

Fim